MAGNA SPERB

 

PELE E SOMBRAS

 

 

No centro da galeria uma estranha metamorfose se opera. A exposição da artista Magna Sperb, no MARGS, propõe mais que o reconhecimento de uma trajetória, a expansão de sua obra. Através da linguagem escultórica, retoma a poética da transformação, que caracterizou etapas anteriores da sua pesquisa artística no campo da representação. Da pintura a apropriação fotográfica, a artista segue operando deslocamentos de uma forma em outra, de um ser em outro.

A luz quando projetada sobre as peles de aço carbono retorcidas, desenham misteriosas e ameaçadoras sombras. Tal recurso, além do efeito visual, busca mergulhar o nosso olhar em certa meditação, para logo sentirmos toda a força que o material encarna. Os estudos de tramas, cuidadosamente colecionados por Sperb, são vestígios de objetos industriais e naturais, respectivamente, fruto da ação humana e da própria vida, que pelas mãos da artista são transformados, erguendo-se na forma de esculturas com seus sombrios reflexos.

As formas se elevam, espalham-se rígidas e tortuosas. Magna tece digitalmente as tramas, redesenha e as entrelaça com esta liga metálica. Percebe-se um certo gesto agressivo resultante da forja deste material cortado a fogo. A renda de aço é moldada pela artista deixando que a forma se irrompa em linhas desfiadas, cingindo o plano frontal entre a parede e o público. Este risco que se lança no espaço como um golpe de espada, desenha no ar um sentimento ameaçador. Desse modo o público visitante se percebe ladeado de formas e sombras. Tais gestos podem significar uma advertência, de que vivemos sob a constante ameaça da insegurança e, consequentemente, de um confinamento social.

Mas a luz que banha as teias e cercas também é mística, evoca a emoção de presenciar tais objetos com a aura que o altar museológico corrobora. Diante da sombra destas grandes formas que aparentam contemplar pensativas nossa presença, toda a interpretação parece ser um esforço em vão para significar a beleza de uma obra de arte, surpreendentemente cercada com o manto do mistério.

Outra vez as formas falam mais que as palavras. São elas que se afastam da realidade, muito embora tenham nascidas dela. Enleios, meandros e ninhos, ou tramas, telas e grades, são transmutadas na metáfora fria das entranhas do tempo. A poética da artista parte do entrelaçamento de um personagem vivo que se rompe deste casulo, cuja beleza original desconhecemos, a não ser os resquícios de peles e sombras nas formas que presenciamos.

Sobre o corpo que se rompeu desse envoltório de linhas pouco sabemos. No entanto, podemos imaginar que o seu coração vive no desejo da artista em ir ao encontro do nosso olhar. Frente a uma obra de arte estamos sempre tangenciando interpretações, a sombra ao refletir os cheios e vazios da estrutura, mostra-nos algo que podemos ver mas não tocar; como o corpo que comove sua alma.

Semelhantes a outras obras de esculturas e instalações é preciso fazer um percurso ao seu redor ou interior para senti-las. A exposição parece com um crepúsculo de formas que, desprovidas do seu corpo, tentam regressar pelas sombras a sua imagem primeira. Aqui reina o silêncio dos vazios, a gravidade daquilo que já fomos. Entre elas alguns reflexos luzidios que se põem sobre as paredes e convalescem de movimentos aqueles corpos estáticos, como se a luz ainda pudesse conferir a vida já despertada.

 

Neste lugar, contemplamos refletidas pelas paredes da galeria a impressão destas grandes esculturas. Sentimos uma estranha compaixão para com esses objetos que vivem na sombra e nos encaminham ao encontro do incompreensível. Quem sabe, por fim, podemos pensar que, apesar da morte ser algo muito triste, a vida é precisamente anterior e maior. Estas cascas retém um poder imenso, que nos impele a conhecer e amar até aqueles que não acreditam que na arte pulsam estes sentimentos vitais.

 

Portanto, tudo tem uma estrutura profunda, até a sombra que provem da arquitetura da luz. Cheios e vazios desenham o espaço da obra e do olhar. Tudo tem uma matriz, uma malha, um grid, uma trama, uma tessitura, um desenho... Abstrato, geométrico, rizomático, radial, ortogonal, orgânico/inorgânico... Tudo tem um porquê. Enquanto a natureza e o humano teimam em cobrir e fechar, a artista prossegue a vazar sua pele de aço.

 

Justamente, é na subtração, no recorte e na ausência que sua obra se materializa. Esta operação já apareceria na série de pinturas recortadas, depois levadas a experiência de desaparecer pelo processo de degradação, primeiro insinuado com adesivos de moscas e baratas sobre tais pinturas figurativas, até a apropriação de imagens de revistas, onde corpos e rostos de modelos são embebidos em solução de água e açúcar para depois servirem, literalmente, de banquete para insetos vivos: as baratas.

 

Contudo, a dimensão kafkiana da obra de Magna Sperb alcança agora outra escala: a urbana. Se antes a imagem crítica da moda e da publicidade alçavam o objeto artístico a condição contemporânea, atualmente é a arquitetura que redimensiona a participação da artista e da obra no mundo. Da pintura na tela, para os recortes em MDF, depois para a revistas e destas para o outdoor, agora são as placas de aço que traçam e expressam todos estes caminhos, processos e trânsitos que entranham a sua criação artística que continua a se metamorfosear e nos surpreender.

 

 

André Venzon

Artista visual, curador e gestor cultural.

Mestre em Poéticas Visuais pelo Instituto de Artes da UFRGS